terça-feira, 2 de outubro de 2012

Passagem das horas...


Diante de tantas coisas que eu tenho visto, tanta violência, tanta maldade, tanto desrespeito pelo ser humano... acho que entendo tudo o que o poeta queria dizer quando escreveu esse poema, pois afinal, não sabemos viver ou sentir. Felizmente todo poeta consegue transformar as piores coisas da vida em palavras que podem nos tocar... profundamente!
Passagem das Horas
(Fragmento)

Trago dentro do meu coração, como num cofre que se não pode fechar de cheio, todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei, todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, ou de tombadilhos, sonhando... 

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. Viajei por mais terras do  que aquelas em que toquei... Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... 

Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir, e a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas, desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, deste desassossego no fundo de todos os cálices, desta angústia no fundo de todos os prazeres, desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas, deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, consangüinidade com o mistério das coisas, choque aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, ou se há outra significação para isto, mais cômoda e feliz. 

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, e fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. Amei e odiei como toda gente, mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, e para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver de dentro da alma triste com os homens, meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo ser prático, ser quotidiano, nítido, ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta.

Seja o que for, era melhor não ter nascido, porque, de tão interessante que é a todos os momentos, a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, a dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte... Entre árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs.

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é.





"Álvaro de Campos"

(Heterônimo de Fernando Pessoa)


2 comentários:

  1. Embriaguei-me! na feliz escolha e descrição desta postagem.
    Parabéns!
    Abraço fraternal

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado minha amiga, você sempre me enchendo de alegria com sua visita e com seus comentários, nunca deixe de aparecer. Grande abraço.

      Excluir

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